quinta-feira, janeiro 29

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Corri.

Fugi daquele sítio para sempre. Para nunca mais. Tinha prometido não mais lá voltar, mas caí na tentação.Voltei uma vez. Uma só vez. Àquele sítio de perdição. De pecado. Ao lugar onde jurei que nunca iria ser a pessoa que sou agora. Não vais encontrar-me na rua, perdida, a pedir. Não. Esse não foi o meu destino. Tenho casa e durmo numa cama limpa. Mas não é isso que me tira o sono noite após noite. O meu desassossego é outro. De outra ordem.

Corri até casa. Até ao meu único abrigo. Sim! A minha casa. Aquela que me protege e me resguarda de mim mesma. Aquela que me impede de ser pior do que me tornei. Aquela que me deixa ser como eu era, e que me permite ser melhor do que sou agora. Pois. Agora não sou nada. Ninguém. É sempre possível ser melhor. Nem que seja por um momento ou dois.

Não sei porque não sou ninguém. Não quero lembrar-me. Neste momento sou eu. Maria. Maria da Aparição para os amigos. Os poucos que me restam. Os poucos que tiveram coragem de acreditar em mim.

Mas isso agora não importa, porque eu continuo a correr. Cheguei a casa, mas nela algo falta.

O dinheiro que eu tinha juntado a custo. As jóias de pouco valor. A televisão minúscula. Nem o rádio me sobrou. Levaram-me tudo. O pouco da minha vida que sobrava. Que restava. Malvados. Bandidos. Cobardes. Vândalos! Que necessidade teriam eles de fazer aquilo! Se eles tivessem aprendido como eu aprendi. Mas eles não querem saber. Só se importam com o pouco esforço. Querem lá eles saber da história da pessoa desgraçada a quem pertenciam os bens.

Fazia-lhes bem saberem uma ou duas. Que ficassem com os bens e também com a lição. Não se deve roubar à toa. Mas eles não o fazem à toa. Eu conheço-os bem. As manhas deles. Descuido meu ter tudo à mão de semear. Era só eu ter-lhes contado a minha história e os quilómetros que aqueles bens já haviam percorrido. Nem me sabe bem recorda-la. Mas prefiro que seja para os outros aprenderem com os meus erros.

Fui ao frigorífico buscar o último pedaço de queijo que me restava. Não que precise dele. Não gosto assim tanto de queijo. Fazia horas que eu tinha saído do emprego arranjado com sorte e tinha desviado o meu caminho até ao fundo do meu poço. Espreitei só lá para dentro. Como posso ter eu sido capaz? Não me resta muito dinheiro até ao fim do mês, e este desvio pode ter-me saído caro. Mas foi a última vez. O ponto final definitivo. O fim de um capítulo negro. Porque eu fui a morte. Um anjo vestido de negro, sem dó nem piedade. Vinguei-me, mas fiz sofrer bastante. Mais do que devia. Mais do que pensava conseguir. Aprendi a nunca dizer que não farei seja o que for. A sociedade não sabe o que eu passei. Perante todos, eu errei. Errei sempre! Amei demais e por isso errei. Mas foi a única vez. E aprendi.

Perdi a vontade de comer o pedaço de queijo com o pequeno pão que comprei hoje. É este assunto. Deixa-me assim. Já se faz tarde. Amanhã é dia de trabalho uma vez mais. As imagens apoderam-se da minha cabeça com toda a força, mas são horas. O corpo pede descanso. E eu dou-lho.