quarta-feira, julho 18

Hoje, anos depois.

Passados tantos anos, voltei a passar na tua casa. A vida deu tantas voltas, mas passei hoje por lá. Nem sei porque. Talvez nunca vá saber.
Entrei.
Não que estivesse no seu melhor estado. A tinta caiu como sinal à tua traição. A porta não aguentou tamanha maldade, e explodiu. Hoje era apenas bocados de madeira espalhados no chão. Depois de tanta dor, nem me preocupei com o telhado que podia cair-me em cima. Ou o que restava dele. Hoje não vinha de negro. Vestia branco, e achei que era a cor certa, para depois de tudo o que se tinha passado naquela casa. Sabia exactamente o sítio e, pé ante pé, firme e segura no andar, enfrentei as escadas. Aquele resto de escadas. O que sobrava delas ou o nada que sobrava. Como nós. Subi devagar. Um passo em falso era uma memória que me atirava brutalmente para o passado. Que me recordava dor, peso, morte, fim. No final da escada parei e contive-me. Todo o meu corpo foi inundado pelo cheiro nauseabundo a sofrimento que me provocaste. E já passaram tantos anos.
Tinha a certeza que era para o quarto da direita, por isso nem quis saber o que podia encontrar no outro. Se alguma de mim ainda restasse depois de sair do quarto da direita, ali voltava. Senti o mesmo medo que antes. Não do que ia encontrar, pois a vida é irónica e encarrega-se de nós mostrar qual é afinal o nosso caminho. Se pudesse contar-te tudo naquilo que me transformei durante estes anos. Durante estes anos duros, cruéis. Durante todo o tempo em que me separei de ti, mas em que acabei por te esquecer. Por matar cada memória. Não por a enterrar, mas queimando, uma a uma. Das piores para as mais boas memórias. Até aos sorrisos, até às confidências. Até ao teu riso. Até a ti.
Muitos outros matei depois de ti, mas foste a primeira é a primeira toda gente sabe que nunca se esquece. Deixaste marca no corpo, mas sobretudo no coração. E nunca mais voltei a ser a mesma.
E segui. Parei em frente à porta do quarto da direita, fechei os olhos e respeitei fundo. Sabia a pó e a tempo. Dei o passo final em direcção ao abismo e esperei o pior.
Abri os olhos com confiança, mas senti a garganta a tremer. O estômago a sufocar-me e os olhos a encherem-se de água. Era mais forte do que eu.  O pânico cobriu-me cada centímetro de pele, mas eu sabia que não era a mesma. Não depois daquilo. Não depois de passados todos estes anos. Agora eu era melhor. Agora eu sou melhor. Agora sou eu.
Abri os olhos e vi.
Não estavas só. Ao pé de ti haviam tantos outros restos de outras outrora pessoas. Tantos outros como tu. Bocados de memórias, de gente, de passado, de sentimentos. Queria que tivesses ficado sozinha, mas outros se seguiram. Passados 10 anos, vim ver-te e preocupar-me só contigo, e não com os outros, deixados ao acaso, imundos e rasgados, cheios de mau cheiro, todos ao pé de ti. Serias uma espécie de rainha para eles. Dos destruidores de memórias, de sonhos, de bom. Não fui capaz de te deixar sozinha, e deixei-te todos eles de presente. Como tu, hoje são restos. Nem bocados de gente, nem ausência de nada. São uma memória tingida e e queimada.
E fugi dali. Para nunca mais voltar.
Para nunca mais voltar, até que a história tivesse sido diferente para mim.

sexta-feira, março 8

Olhei.
Ali estavas tu. Quem diria?
Sentada nas escadas, escondidas a um canto. O único espaço vazio naquela casa cheia de nada.
Cheirava a tabaco, e tudo mais que pudesse vir de alguém que não fumasse. Palavras doidas a correr no ar. O cheiro sufocava, mas era ali que te sentias bem. Ao pé de toda a gente, exilada do mundo. Nunca percebeste o porquê daquela satisfação de exclusão, mas tinhas-te habituado à vida que escolheste depois de eu morrer. Eu também nunca percebi.
Boas
(Silêncio)
Há muito que não te via. Como vais?
(Silêncio)
Desconhecia que o passado te tinha tirado muito do que tinhas, incluindo a voz?
Do presente só espero o que não me podes dar
, disse ela.
No passado esperaste que eu te desse até a minha vida.
(Silêncio)
Vais querer alguma coisa?
Vodka. Negro.
Negra é a recordação do passado, que continua a perseguir-te até hoje.
Quatro pedras de gelo.
Se o teu coração caísse do teu corpo, gelava não só a tua bebida, como a minha. Como tiveste a coragem de me fazer o que fizeste? Deixaste me morrer por um amor onde tu nunca amaste. Não desisti de te amar, mesmo quando me traíste! Mas conseguiste pior que me matar.
O medo de tudo e o desejo de nada. A gratificação não entregue e a força de vontade para ser o que nunca tinha sido. Fui realmente o que queria ser. Tive tudo na mão. Controlei. Fui Deus. E não me arrependo. Nos olhos dela não havia qualquer mágoa.

(Estava escrito aos anos. Um dia pego nisto e termino. Agora que reparo, separam exactamente três anos o último post do penúltimo. Mas para hoje foi demasiado para recordar.)

segunda-feira, março 8

Sonhos

"Obrigada por teres assombrado as minhas noites, as minhas memórias. Não sei nada de ti, mas tenho te respeito. Porque me disseram que morreste! Que sofreram por ti, porque eras perfeito. E eu nunca te pude conhecer. Estive mais preocupada com as minhas intrigas pessoais, que quando partiste, não liguei. Desculpa-me, mas perdi o teu nome no tempo. Gastei a minha raiva num amor que nunca consegui ter e tu sim. Mas agora tu... Voltaste? Ou morri eu? Mataram-me...? Creio que não senti dor. Não como tu hás de ter sentido. Eu..."

"... Aterrorizei os teus sonhos, tapei-te os olhos, poupei-te a ainda mais vergonha. Mas voltei para que soubesses que só se morre na cabeça das pessoas, não no coração. Não queiras matar alguém que, sendo menos que tu, não podes matar. Não por vingança pessoal. Ninguém tem o que merece, e na altura, ela não há-de merece-lo."

"Mas está morta. Na minha alma. Nas nossas almas. Ela levou o meu amor e levou-me com ela. Arrancou-me o que tinha cá dentro, e deixou-me... Aqui. Encheu-me de esperanças, e tirou-me o ar, como se de um balão eu me tratasse. Chorei montes e vales, mas tenho ainda vivas cada uma das memórias que me fez ama-la. Que desejo! O cheiro a ópio nos cabelos negros e sedosos... Agora vieste tu, com as tuas cores, manchar a minha beleza vestida das cores da noite. Das cores da morte. Como te atreves?"

"..."

"Como te atreves, diz-me? A entrares na minha vida sem autorização, sem me conheceres, sem me respeitares, sem poderes perdoar-me, sem poderes falar-me! Mas encheste o que ainda guardava só de meu, o que me sobrou. O pouco triste e roto que foi consumido por sentimentos menos nobres, por vontades maiores. Porque me fazes ter medo e gritar outra vez? Que me queres dizer que eu não entendo?" - gritava-lhe tentando agarrar-lhe o casaco que vira em fotografias. Tinha medo que fosse real. - "Tenho vómitos, e os olhos pesados, mas não consigo dormir com medo que apareças e me atormentes. Tu, que nem te conheço. Que perdi o teu nome. Que lutaste uma batalha que não era a minha, e que agora tenho de sofrer por ela! Afasta-te! Vai-te! Leva contigo o meu amor e dá-me paz. Não me contes como foi, nem quanto sofreste. Leva o meu amor por ela, e encontra noutro lado a felicidade. Não quero mais pensar em esconder sentimentos, matar amores, sofrer horrores que a carne nunca poderá vir a entender. VAI-TE! PÁRA DE ME ATORMENTAR E HORRORIZAR! DEIXA-ME VIVER! DEIXA-ME! DEIXA-ME! DEIXA-ME!"


Nisto acordei. Acordei de um sono profundo. Sei muito bem quem tinha visto, embora não me lembre do nome, mas sei. Faltavam poucos dias, e a loucura que sentia dentro de mim, era apenas desejo ardente de vislumbrar a perfeição vestida de negro. Paixão intensa de a ter nos braços pela última vez, e ama-la para sempre. Para sempre ser minha. Vontade que me matava por dentro, de sentir os lábios doces e suaves, flocos de neve puros, banhados de vermelho. Sentia-me a arder. A arder de sentimentos, de memórias. Sentia o meu amor a arder, e a restarem apenas cinzas inundadas de raiva...

quinta-feira, fevereiro 12

Vingança - Parte Segunda

Passei por de mansinho os meus dedos pelos suaves lábios dela. Sorria. O sorriso que eu sempre tentei arrancar e nunca consegui. O sorriso pelo qual troquei o meu coração, na esperança de ser eterno. Escutei-lhe os medos por um momento e passei a mão por todo o corpo. Tinha de senti-la. Era a última vez.
O corpo quente, a depilação acabada de fazer, e os músculos semi-definidos. Podia beija-la para o resto da minha vida. Ama-la e faze-la feliz. Aquela carne provocava-me desejo levando-me quase ao êxtase. Beijei-a. Beijei-a suavemente em todo o corpo. Queria senti-la nos meus lábios. Mas ela não acordou. O ópio nauseabundo fez-me voltar á realidade.
Olhei mais uma vez para o anjo negro que tinha destruído a minha vida, mas que a partir daquele dia me deixaria viver. Como era lindo e perfeito!
Afastei-me e controlei o desejo de a beijar, de a cobrir de amor, de a perdoar, e voltar a reviver com ela, de voltar a acreditar, de voltar a ser eu no meu esplendor! Quando voltei a aproximar-me a raiva cobria o meu coração, o ódio as minhas mãos, o nojo a minha face.
Fiz deslizar os meus lábios pelo tendão de Aquiles. Tirei o pendente com um coração, que anos antes havia servido como selo de uma amizade inigualável. Hoje era o presente jamais destruído e transformado. Era uma lindíssima lâmina afiada, na qual podia ver o meu rosto meio desfigurado. Como eu era linda e como ela me havia deixado. Aquela criatura indigna. A lâmina deslizou por aquelas pernas e quase no fim, parou. Tinha chegado lá. Ao sítio que a iria prender naquela cama para sempre. Cortei-lho com frieza e segurança. Do corpo dela saiu o grito mais agudo que alguma vez eu já tinha ouvido. Senti o cheiro a ópio a mergulhar no sangue, mas não consegui conter-me. Esse grito fez despoletar tudo o que pairava no meu interior. E ouviu-se o suco ácido a mergulhar deliciosamente no sangue.
Ela tentou levantar-se e ainda consegui apanhar alguns dos meus cabelos, mas o pezito mexeu-se! Novo grito! Mais um. Bem agudo! O horror vindo directamente do mais profundo interior.
A custo, quase no fundo do poço, ouviu-se uma pergunta “Porquê?”, numa voz baixa, martirizada e de dor, mas não me comoveu. Tinha expirado o tempo para perguntas.
As perfeitas mãos dela ainda tentaram atingir o meu pescoço, mas fi-la lembrar-se da dor inumana que permanecia no seu pé. Gritos. Tinha a impressão de que a garganta dela me atingiria a qualquer momento, vomitada pela boca. Cortei-lhe sem piedade qualquer, o dedo mais pequeno de ambos. Sempre achei piada àquele dedito, pequenito e redondito. Senti os seus calcanhares acertarem o meu estômago com violência, mas isso ainda me enfureceu mais. Tornei-a presa para sempre àquela casa. Sem qualquer pinga de sangue, senti a raiva florescer com mais força dentro de mim e fui mais longe. Piquei-lhe as pernas com toda a fúria. Parecia um cão a ganir. Uma galinha a ser degolada nas minhas mãos. Aquele corpo mal tremia com tanto horror.

Esqueci as pernas já meio ensanguentados e beijei-a mais uma vez com os meus lábios cobertos de entranhas e nojo. Desta vez num dos braços. Como era bom o cheiro que outrora a cobria. Beijei-a mais uma vez no peito, redondo e perfeito. Nos mamilos tesos de horror, encostei os meus lábios com delicadeza. Num gesto carnal, lambi-os e passei-lhe a mão por entre as pernas. Pequenos toques. Como a ténue linha entre o prazer e a dor. Mas abri a boca até onde os maxilares permitiam e rasguei-lhe tudo o que consegui, com todas as forças que tinha guardado até então. E cuspi aquele resto de mama para o lado, sem piedade. E fiquei por momentos a olhar-me de fora, cheia de sangue e vingança a jorrar-me pela boca.

Mas peguei na pequena tesourinha com que tratávamos as unhas e estendi-lhe o braço direito. Percorri uma ultima vez com o olhar aqueles braços que inicialmente me protegiam. Espetei-lha no pulso e rasguei-lhe a pele o mais para cima possível. Sem escrúpulos! Ouviram-se outra vez gritos. Gritos de dor e terror. Palavras feias e mais gritos. A mãozita do braço oposto veio, trémula, em socorro. Os olhos esbugalhados de surpresa gritavam insistentemente súplicas e quase choravam sangue. Cravei-lhe a pequena tesoura na mão as vezes suficientes para encher o quarto de gritos, os lençóis de sangue e afogar o cheiro nojento de ópio naquele banho incomplacente.
Ouviam-se gritos cada vez mais altos, apesar da sua voz não conseguir sair com tanto sofrimento. Podia sentir-se o medo que corria nas poucas veias ainda intactas da minha menina. As suas forças iam morrendo aos poucos, mas fui mais além.
Cortei com cuidado as cordas vocais para que pudesse silenciosamente continuar. Aqueles guinchos asquerosos perturbavam-me. Marquei o seu ventre liso com a minha dor. “TRAIDORA”, era a palavra que a iria acompanhar até junto dos vermes que não teriam coragem de comer aquele corpo coberto de terra enlameada. Corpo esse que se contorcia e pedia desmesuradamente um fim. Lindo. Maravilhoso. Um fim tenro.
Sangue. O cheiro deplorante a sangue. O coração dela já mal batia, mas sobrava-me ainda uma coisa. A razão de estar ali. A vingança. O prato frio servido quente. Bem quente. Parti-lhe a beleza com uma das duas garrafas de vodka barato que serviam de guardiões àquele quarto. Neste momento, podia dizer que a tinha transformado como ela a mim. Era perfeita como eu. Ela tinha-me tirado a força de viver. Eu tirei-lhe a vida.
A outra garrafa, despejei-a com cuidado para cima dos lençóis e para o tendão coberto de vómito. Acendi o isqueiro. Acariciei a chama laranja. Que linda era. E pacientemente esperei que as chamas queimassem os lençóis e passei o isqueiro aceso de mansinho por aquele desprezível braço rasgado. Começou a sentir-se o cheiro a carne. Carne queimada. Aquele cheiro não me era totalmente estranho, mas tornava-se cada vez mais intenso e difícil de suportar. Já não restavam vidas naquela casa para além da minha. Encostei-me à parede e vi o espectáculo das chamas doces da minha aguardada vingança cobrirem-lhe cada vez mais rápida e violentamente o busto.
Depois corri.
Fugi daquele sítio para sempre. Para nunca mais. Prometi não mais lá voltar.

segunda-feira, fevereiro 2

Vingança - Parte Primeira

Entrei naquela casa imunda, cheia de falsos sorrisos. Havia sido pintada há pouco tempo. Ainda se sentia o cheiro a tinta, misturado com o perfume de falsidade. As paredes lisas escondiam o passado, possivelmente também o futuro. Subi as escadas, uma após uma.
As escadas de madeira rangiam baixinho. Mas subi-as devagar. Muito devagarinho e com firmeza. Senti um vento a passar-me pelo corpo. Um arrepio a subir-me vertiginosamente pela coluna. Mas isso não me deteve. Não tinha compaixão, nem sequer mais amor. Tinha ódio, raiva, nojo.
O cheiro nauseabundo a velas e incenso, entranhado nas paredes, sentia-se desde á muito, mas com muito mais intensidade no último degrau. Olhei. Um corredor com um quarto de cada lado. Um quadro escuro com uma imagem triste separava os dois. Silêncio. Não ouvia respiração, nem mesmo a minha. O sangue subia-me á cabeça. Qual das portas seria?
Segui para a esquerda. Fiz com que a capa toda me cobrisse. Toquei suavemente na porta encostada. Não era o cheiro dela. Olhei melhor. Silêncio. Um quarto vazio, bem como o resto da casa. Sai, como se nunca lá tivesse entrado. Era o outro quarto. Sim! Aquele.
O meu coração batia cada vez mais devagar. Tinha a certeza do que estava a fazer. Quase podia sair do meu corpo e poder ver-me a caminhar lentamente em direcção a ela. Era a minha ruína, mas também a única maneira de me fazer reviver. Velas e incenso. Como me podia ter enganado? Aquele odor horrível que me perseguiu durante anos. Que acompanhou a minha adolescência e a minha grande paixão.
O cheiro ficava cada vez mais forte e impossível de respirar. À medida que me ia aproximando, quase podia distinguir o cheiro de ópio e lavanda. Sentia as pernas a quererem beijar o chão. Aqueles cheiros. Sentei-me. Acostumei-me aos cheiros insuportáveis e ao cheiro do passado. Lembrava-me do dia em que fizemos juras de amizade numa pequena mesa de madeira, debaixo de uma grande árvore e de um lindo pôr-do-sol. Tinha sido o ponto alto de uma amizade tão bonita. Quase perfeita. Mas eu não estava ali para lembranças inoportunas de memórias boas, mas para fazer lembrar desse dia a quem o esqueceu. E quebrou as promessas eternas de amizade. Senti um nó na garganta. Queria sair-me pela boca com nojo da mentira onde me haviam tão perfeitamente integrado. No mínimo, devia fazer-lhe entender a dor que senti. Eu que a amei tanto. Que lhe ofereci sem quais quer dúvidas todo o meu coração, ajoelhada no chão perante ela. Pegou nele. Mas ela desfê-lo. Cortou-o ao meio, rasgou-o novamente e pisou-o como se de um cigarro se tratasse. Cuspiu-lhe enquanto me via cair de joelhos no chão, no sofrimento mais puro que alguma vez havia sentido.
Mas levantei-me. Ergui-me de uma só vez. Nova. Recomposta. Tal e qual como sairia daquele sítio. Nova. Era isso que eu queria para mim.
Encostei-me á porta. Passei a mão pela porta de madeira, já cheia de lascas, que tentavam insistentemente entrar na minha mão. O desejo de transpor a porta inquietava-me. As recordações boas vieram-me à cabeça, mas logo as más as queimaram sem qualquer permissão. Sim! Essa era a resposta. A solução. Queimar.
Entrei naquele quarto sem dúvidas algumas. Ouvia-se um respirar baixinho. Sentei-me ao lado dela. Quieta. Tranquila. Sossegada. Dormia impávida e serena. Mal imaginava ela que o erro que havia cometido anos atrás não tinha sido esquecido, e lhe ia sair demasiado caro.

quinta-feira, janeiro 29

Inicio

Corri.

Fugi daquele sítio para sempre. Para nunca mais. Tinha prometido não mais lá voltar, mas caí na tentação.Voltei uma vez. Uma só vez. Àquele sítio de perdição. De pecado. Ao lugar onde jurei que nunca iria ser a pessoa que sou agora. Não vais encontrar-me na rua, perdida, a pedir. Não. Esse não foi o meu destino. Tenho casa e durmo numa cama limpa. Mas não é isso que me tira o sono noite após noite. O meu desassossego é outro. De outra ordem.

Corri até casa. Até ao meu único abrigo. Sim! A minha casa. Aquela que me protege e me resguarda de mim mesma. Aquela que me impede de ser pior do que me tornei. Aquela que me deixa ser como eu era, e que me permite ser melhor do que sou agora. Pois. Agora não sou nada. Ninguém. É sempre possível ser melhor. Nem que seja por um momento ou dois.

Não sei porque não sou ninguém. Não quero lembrar-me. Neste momento sou eu. Maria. Maria da Aparição para os amigos. Os poucos que me restam. Os poucos que tiveram coragem de acreditar em mim.

Mas isso agora não importa, porque eu continuo a correr. Cheguei a casa, mas nela algo falta.

O dinheiro que eu tinha juntado a custo. As jóias de pouco valor. A televisão minúscula. Nem o rádio me sobrou. Levaram-me tudo. O pouco da minha vida que sobrava. Que restava. Malvados. Bandidos. Cobardes. Vândalos! Que necessidade teriam eles de fazer aquilo! Se eles tivessem aprendido como eu aprendi. Mas eles não querem saber. Só se importam com o pouco esforço. Querem lá eles saber da história da pessoa desgraçada a quem pertenciam os bens.

Fazia-lhes bem saberem uma ou duas. Que ficassem com os bens e também com a lição. Não se deve roubar à toa. Mas eles não o fazem à toa. Eu conheço-os bem. As manhas deles. Descuido meu ter tudo à mão de semear. Era só eu ter-lhes contado a minha história e os quilómetros que aqueles bens já haviam percorrido. Nem me sabe bem recorda-la. Mas prefiro que seja para os outros aprenderem com os meus erros.

Fui ao frigorífico buscar o último pedaço de queijo que me restava. Não que precise dele. Não gosto assim tanto de queijo. Fazia horas que eu tinha saído do emprego arranjado com sorte e tinha desviado o meu caminho até ao fundo do meu poço. Espreitei só lá para dentro. Como posso ter eu sido capaz? Não me resta muito dinheiro até ao fim do mês, e este desvio pode ter-me saído caro. Mas foi a última vez. O ponto final definitivo. O fim de um capítulo negro. Porque eu fui a morte. Um anjo vestido de negro, sem dó nem piedade. Vinguei-me, mas fiz sofrer bastante. Mais do que devia. Mais do que pensava conseguir. Aprendi a nunca dizer que não farei seja o que for. A sociedade não sabe o que eu passei. Perante todos, eu errei. Errei sempre! Amei demais e por isso errei. Mas foi a única vez. E aprendi.

Perdi a vontade de comer o pedaço de queijo com o pequeno pão que comprei hoje. É este assunto. Deixa-me assim. Já se faz tarde. Amanhã é dia de trabalho uma vez mais. As imagens apoderam-se da minha cabeça com toda a força, mas são horas. O corpo pede descanso. E eu dou-lho.