quinta-feira, fevereiro 12

Vingança - Parte Segunda

Passei por de mansinho os meus dedos pelos suaves lábios dela. Sorria. O sorriso que eu sempre tentei arrancar e nunca consegui. O sorriso pelo qual troquei o meu coração, na esperança de ser eterno. Escutei-lhe os medos por um momento e passei a mão por todo o corpo. Tinha de senti-la. Era a última vez.
O corpo quente, a depilação acabada de fazer, e os músculos semi-definidos. Podia beija-la para o resto da minha vida. Ama-la e faze-la feliz. Aquela carne provocava-me desejo levando-me quase ao êxtase. Beijei-a. Beijei-a suavemente em todo o corpo. Queria senti-la nos meus lábios. Mas ela não acordou. O ópio nauseabundo fez-me voltar á realidade.
Olhei mais uma vez para o anjo negro que tinha destruído a minha vida, mas que a partir daquele dia me deixaria viver. Como era lindo e perfeito!
Afastei-me e controlei o desejo de a beijar, de a cobrir de amor, de a perdoar, e voltar a reviver com ela, de voltar a acreditar, de voltar a ser eu no meu esplendor! Quando voltei a aproximar-me a raiva cobria o meu coração, o ódio as minhas mãos, o nojo a minha face.
Fiz deslizar os meus lábios pelo tendão de Aquiles. Tirei o pendente com um coração, que anos antes havia servido como selo de uma amizade inigualável. Hoje era o presente jamais destruído e transformado. Era uma lindíssima lâmina afiada, na qual podia ver o meu rosto meio desfigurado. Como eu era linda e como ela me havia deixado. Aquela criatura indigna. A lâmina deslizou por aquelas pernas e quase no fim, parou. Tinha chegado lá. Ao sítio que a iria prender naquela cama para sempre. Cortei-lho com frieza e segurança. Do corpo dela saiu o grito mais agudo que alguma vez eu já tinha ouvido. Senti o cheiro a ópio a mergulhar no sangue, mas não consegui conter-me. Esse grito fez despoletar tudo o que pairava no meu interior. E ouviu-se o suco ácido a mergulhar deliciosamente no sangue.
Ela tentou levantar-se e ainda consegui apanhar alguns dos meus cabelos, mas o pezito mexeu-se! Novo grito! Mais um. Bem agudo! O horror vindo directamente do mais profundo interior.
A custo, quase no fundo do poço, ouviu-se uma pergunta “Porquê?”, numa voz baixa, martirizada e de dor, mas não me comoveu. Tinha expirado o tempo para perguntas.
As perfeitas mãos dela ainda tentaram atingir o meu pescoço, mas fi-la lembrar-se da dor inumana que permanecia no seu pé. Gritos. Tinha a impressão de que a garganta dela me atingiria a qualquer momento, vomitada pela boca. Cortei-lhe sem piedade qualquer, o dedo mais pequeno de ambos. Sempre achei piada àquele dedito, pequenito e redondito. Senti os seus calcanhares acertarem o meu estômago com violência, mas isso ainda me enfureceu mais. Tornei-a presa para sempre àquela casa. Sem qualquer pinga de sangue, senti a raiva florescer com mais força dentro de mim e fui mais longe. Piquei-lhe as pernas com toda a fúria. Parecia um cão a ganir. Uma galinha a ser degolada nas minhas mãos. Aquele corpo mal tremia com tanto horror.

Esqueci as pernas já meio ensanguentados e beijei-a mais uma vez com os meus lábios cobertos de entranhas e nojo. Desta vez num dos braços. Como era bom o cheiro que outrora a cobria. Beijei-a mais uma vez no peito, redondo e perfeito. Nos mamilos tesos de horror, encostei os meus lábios com delicadeza. Num gesto carnal, lambi-os e passei-lhe a mão por entre as pernas. Pequenos toques. Como a ténue linha entre o prazer e a dor. Mas abri a boca até onde os maxilares permitiam e rasguei-lhe tudo o que consegui, com todas as forças que tinha guardado até então. E cuspi aquele resto de mama para o lado, sem piedade. E fiquei por momentos a olhar-me de fora, cheia de sangue e vingança a jorrar-me pela boca.

Mas peguei na pequena tesourinha com que tratávamos as unhas e estendi-lhe o braço direito. Percorri uma ultima vez com o olhar aqueles braços que inicialmente me protegiam. Espetei-lha no pulso e rasguei-lhe a pele o mais para cima possível. Sem escrúpulos! Ouviram-se outra vez gritos. Gritos de dor e terror. Palavras feias e mais gritos. A mãozita do braço oposto veio, trémula, em socorro. Os olhos esbugalhados de surpresa gritavam insistentemente súplicas e quase choravam sangue. Cravei-lhe a pequena tesoura na mão as vezes suficientes para encher o quarto de gritos, os lençóis de sangue e afogar o cheiro nojento de ópio naquele banho incomplacente.
Ouviam-se gritos cada vez mais altos, apesar da sua voz não conseguir sair com tanto sofrimento. Podia sentir-se o medo que corria nas poucas veias ainda intactas da minha menina. As suas forças iam morrendo aos poucos, mas fui mais além.
Cortei com cuidado as cordas vocais para que pudesse silenciosamente continuar. Aqueles guinchos asquerosos perturbavam-me. Marquei o seu ventre liso com a minha dor. “TRAIDORA”, era a palavra que a iria acompanhar até junto dos vermes que não teriam coragem de comer aquele corpo coberto de terra enlameada. Corpo esse que se contorcia e pedia desmesuradamente um fim. Lindo. Maravilhoso. Um fim tenro.
Sangue. O cheiro deplorante a sangue. O coração dela já mal batia, mas sobrava-me ainda uma coisa. A razão de estar ali. A vingança. O prato frio servido quente. Bem quente. Parti-lhe a beleza com uma das duas garrafas de vodka barato que serviam de guardiões àquele quarto. Neste momento, podia dizer que a tinha transformado como ela a mim. Era perfeita como eu. Ela tinha-me tirado a força de viver. Eu tirei-lhe a vida.
A outra garrafa, despejei-a com cuidado para cima dos lençóis e para o tendão coberto de vómito. Acendi o isqueiro. Acariciei a chama laranja. Que linda era. E pacientemente esperei que as chamas queimassem os lençóis e passei o isqueiro aceso de mansinho por aquele desprezível braço rasgado. Começou a sentir-se o cheiro a carne. Carne queimada. Aquele cheiro não me era totalmente estranho, mas tornava-se cada vez mais intenso e difícil de suportar. Já não restavam vidas naquela casa para além da minha. Encostei-me à parede e vi o espectáculo das chamas doces da minha aguardada vingança cobrirem-lhe cada vez mais rápida e violentamente o busto.
Depois corri.
Fugi daquele sítio para sempre. Para nunca mais. Prometi não mais lá voltar.

2 comentários:

  1. Amiga...

    Quando chegares, temos de falar!
    Consultar um psicoterapeuta para retirar o teu dark side :P

    Sabes que estou a brincar! :D

    Esta' espectacular, (ate' fiquei com medo! :3)

    Grande escritora @

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