segunda-feira, fevereiro 2

Vingança - Parte Primeira

Entrei naquela casa imunda, cheia de falsos sorrisos. Havia sido pintada há pouco tempo. Ainda se sentia o cheiro a tinta, misturado com o perfume de falsidade. As paredes lisas escondiam o passado, possivelmente também o futuro. Subi as escadas, uma após uma.
As escadas de madeira rangiam baixinho. Mas subi-as devagar. Muito devagarinho e com firmeza. Senti um vento a passar-me pelo corpo. Um arrepio a subir-me vertiginosamente pela coluna. Mas isso não me deteve. Não tinha compaixão, nem sequer mais amor. Tinha ódio, raiva, nojo.
O cheiro nauseabundo a velas e incenso, entranhado nas paredes, sentia-se desde á muito, mas com muito mais intensidade no último degrau. Olhei. Um corredor com um quarto de cada lado. Um quadro escuro com uma imagem triste separava os dois. Silêncio. Não ouvia respiração, nem mesmo a minha. O sangue subia-me á cabeça. Qual das portas seria?
Segui para a esquerda. Fiz com que a capa toda me cobrisse. Toquei suavemente na porta encostada. Não era o cheiro dela. Olhei melhor. Silêncio. Um quarto vazio, bem como o resto da casa. Sai, como se nunca lá tivesse entrado. Era o outro quarto. Sim! Aquele.
O meu coração batia cada vez mais devagar. Tinha a certeza do que estava a fazer. Quase podia sair do meu corpo e poder ver-me a caminhar lentamente em direcção a ela. Era a minha ruína, mas também a única maneira de me fazer reviver. Velas e incenso. Como me podia ter enganado? Aquele odor horrível que me perseguiu durante anos. Que acompanhou a minha adolescência e a minha grande paixão.
O cheiro ficava cada vez mais forte e impossível de respirar. À medida que me ia aproximando, quase podia distinguir o cheiro de ópio e lavanda. Sentia as pernas a quererem beijar o chão. Aqueles cheiros. Sentei-me. Acostumei-me aos cheiros insuportáveis e ao cheiro do passado. Lembrava-me do dia em que fizemos juras de amizade numa pequena mesa de madeira, debaixo de uma grande árvore e de um lindo pôr-do-sol. Tinha sido o ponto alto de uma amizade tão bonita. Quase perfeita. Mas eu não estava ali para lembranças inoportunas de memórias boas, mas para fazer lembrar desse dia a quem o esqueceu. E quebrou as promessas eternas de amizade. Senti um nó na garganta. Queria sair-me pela boca com nojo da mentira onde me haviam tão perfeitamente integrado. No mínimo, devia fazer-lhe entender a dor que senti. Eu que a amei tanto. Que lhe ofereci sem quais quer dúvidas todo o meu coração, ajoelhada no chão perante ela. Pegou nele. Mas ela desfê-lo. Cortou-o ao meio, rasgou-o novamente e pisou-o como se de um cigarro se tratasse. Cuspiu-lhe enquanto me via cair de joelhos no chão, no sofrimento mais puro que alguma vez havia sentido.
Mas levantei-me. Ergui-me de uma só vez. Nova. Recomposta. Tal e qual como sairia daquele sítio. Nova. Era isso que eu queria para mim.
Encostei-me á porta. Passei a mão pela porta de madeira, já cheia de lascas, que tentavam insistentemente entrar na minha mão. O desejo de transpor a porta inquietava-me. As recordações boas vieram-me à cabeça, mas logo as más as queimaram sem qualquer permissão. Sim! Essa era a resposta. A solução. Queimar.
Entrei naquele quarto sem dúvidas algumas. Ouvia-se um respirar baixinho. Sentei-me ao lado dela. Quieta. Tranquila. Sossegada. Dormia impávida e serena. Mal imaginava ela que o erro que havia cometido anos atrás não tinha sido esquecido, e lhe ia sair demasiado caro.

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